O caso de Honduras em 2009, quando o presidente eleito Manuel Zelaya
foi deposto, acendeu um claro sinal de alerta em todo continente
latino-americano. A democracia como método de escolha majoritária e
forma popular de decisão politica pode ser assolada por mandatários
parlamentares e juízes togados que usam de seus poderes como afronta a
Constituição, com o fim de destituir lideres eleitos democraticamente.
Em regimes presidencialistas, presidentes podem sofrer impedimento de
seu mandato pelo Parlamento, mas isso apenas após a comprovação de
condutas caracterizadoras de ilícitos e anteriormente previstas nas
respectivas constituições ou em leis aprovadas pelos congressistas, após
sua comprovação consistente por métodos processuais que garantam ampla
defesa com o consequente contraditório e ampla defesa.
O Parlamento, quando realiza impedimento do mandato do presidente sem
observância do devido processo legal e dos direitos do acusado, age com
inegável abuso de poder, promovendo o que, no âmbito da ciência
política, se alcunha como “golpe de estado” – ou seja, interrupção
autoritária e, ao menos institucionalmente, violenta do ciclo
democrático regular.
Quando se usa a expressão “julgamento político” para tal forma de
juízo, não se quer dizer julgamento segundo a vontade integralmente
autônoma e livre do julgador, inclusive com eventual dispensa do devido
processo legal.
Em um estado democrático de direito não existem juízos imperiais, que
se caracterizam pela formação autônoma da vontade do julgador. Para ser
tido como tal, qualquer julgamento, por mais discricionário que seja, é
pautado no que Kant e a moderna teoria constitucional chamam de juízo
“heterônomo”, qual seja, no sentido jurídico, vontade constituída a
partir dos fins e processos estipulados na ordem jurídica e não no juízo
absolutamente subjetivo do julgador.
Um presidente de um regime presidencialista, portanto, não se
confunde com o primeiro ministro de um regime parlamentarista. Não pode
ser afastado da função por mero juízo de conveniência e oportunidade do
Parlamento, mas apenas pelo cometimento de delitos previstos
anteriormente na ordem jurídicas e demonstrados pelo devido processo
legal.
Por óbvio, o devido processo legal não é uma mera pantomima formal.
Há que se oferecer prazo razoável de defesa e a devida dilação
probatória, os direitos do acusado hão de ser respeitados, a conduta
tida como delitiva não deve ser circunscrita a mera decisão subjetiva
quanto ao cumprimento de certos valores ideológicos. Ao eleitor cabe o
juízo ideológico do governo, não ao parlamento.
No caso de Zelaya, sequer direito de defesa anterior ao afastamento
foi oferecido pelo Parlamento e pela jurisdição. No caso de Fernando
Lugo no Paraguai, o que houve foi um “julgamento” a jato e de exceção. O
prazo de defesa foi exíguo, sem a oferta da devida dilação probatória,
as acusações têm caráter preponderantemente ideológico e não de juízo de
ilicitude na conduta. A decisão já se encontrava decidida e escrita
antes da apresentação da defesa. Ou seja: trata-se de mais um caso de
ofensa grave a constituição nacional, perpetrada pelo respectivo
Parlamento, que tira do poder um governante democraticamente eleito
O jovem jurista Luis Regules me observou que a quase totalidade de
golpes de Estado na América Latina se deram com apoio parlamentar. É uma
história de tristes resultados que insiste em se repetir cada vez mais
como farsa.
A decisão aprovada nesta sexta-feira 22 pelo Senado do Paraguai, a
nosso ver, tem evidente caráter de golpe de Estado e não pode ser aceita
pelos organismos internacionais que, segundo tratados multilaterais,
velam pela democracia no continente.
O Brasil precisa renovar a coragem democrática demonstrada no
episódio do golpe contra o governo de Zelaya e apoiar abertamente o
presidente do Paraguai democraticamente eleito e inconstitucionalmente
declarado impedido.
Se nos aquietarmos face a tal ofensa praticada no país vizinho, a vítima amanhã pode ser a nossa democracia.
Senado paraguaio destitui Lugo e golpe relâmpago é consolidado
O veloz processo de impeachment contra o presidente paraguaio
Fernando Lugo teve o final desejado pelos conservadores do país nesta
sexta-feira 22. A maioria absoluta no Senado aprovou a remoção do
mandatário do poder por 39 votos favoráveis e quatro contrários. Eram
necessários 30 votos dos 45 senadores, uma tarefa fácil em um parlamento
dominado pela oposição. Houve duas ausências. O vice-presidente
Frederico Franco, do PLRA (Partido Liberal Radical Autêntico), assume o
posto um ano após romper a coligação com Lugo.
Em discurso logo após a decisão, Lugo pareceu derrotado e sem
capacidade de reagir. “Me submeto à decisão do Congresso e estou
disposto a responder sempre por meus atos como presidente”, disse. “Me
despeço como presidente, mas não como cidadão”, afirmou. Lugo também
pediu que a parte da população favorável a ele não faça protestos
violentos. “Faço um profundo chamado para que as manifestações sejam
pelas vias pacíficas”, disse. “Que não se derrube mais sangue por
motivos mesquinhos em nosso país”.
A Câmara dos Deputados, também dominada pela oposição, aprovou na
quinta-feira 21 o processo de impeachment com 73 votos a favor e apenas
um contra. O Senado abraçou a ideia rapidamente, sob o pretexto de Lugo
mobilizasse suas bases no interior do país e levasse a uma onda de
violência. O Senado agiu como juizado político e concedeu apenas duas
horas de defesa a Lugo, meramente proforma.
Ação foi vista por muitos países latinos como um golpe de Estado e
pela União das Nações Sul-Americanas (Unasul) como uma “violação da
ordem democrática”. O processo relâmpago espantou porque faltam apenas
nove meses para o fim da administração de Lugo, sem a possibilidade de
reeleição.
Mortivos da destituição
Os parlamentares defenderam a remoção do presidente pelo suposto
“fraco desempenho de suas funções” após um confronto violento com
trabalhadores sem-terra na região leste do país na sexta-feira 15, que
culminou em 17 mortes – 11 de trabalhadores rurais sem-terra e 6 de
policiais na região de Curuguaty, departamento (estado) de Canindeyú.
Haviam também outros quatro motivos. Entre eles uma manifestação de
jovens de esquerda no Comando de Engenharia das Forças Armadas, em 2009 –
que para a oposição foi financiada com recursos da hidrelétrica de
Yaciretá -, o uso de tropas militares em 2012 por sem-terra em Ñacunday
para pressionar fazendeiros.
Além disso, há a responsabilização de Lugo pela violência no país,
que teria sido tratada de forma incorreta. Essa acusação inclui a “falta
de vontade política” para combater os guerrilheiros do EPP (Exército do
Povo Paraguaio). A última acusação tem caráter internacional: os
parlamentares criticaram a decisão de Lugo em ratificar o Protocolo de
Ushuaia II, de dezembro de 2011, que prevê intervenção externa caso uma
democracia esteja em perigo.
Apoiado por três advogados e dois auxiliares, Lugo teve duas horas
para responder às acusações do processo no Senado. A defesa tentou
pressionar para um adiamento dentro do prazo constitucional de 18 dias,
mas não obteve sucesso.
Como nos tempos da Guerra Fria
Os advogados do presidente mostraram indignação com a condução do caso. Segundo o jornal paraguaio Ultima Hora,
Enrique García definiu o julgamento como viciado e nulo por violar o
direito da não condenação prévia. “Este julgamento é igual aos da Guerra
Fria”, ressaltou Adolfo Ferreiro. Ele completou que a negativa do
Senado em ampliar o prazo da defesa evidencia a clara intenção de
condenar o presidente, um ato que pode “trazer consequências políticas e
econômicas imprevisíveis”. “Querem cassar um presidente eleito por
professar ideias que são contrárias às ideias de seus julgadores”,
afirmou.
A defesa negou todas as acusações, alegando que não havia uso das
Forças Armadas por movimentos sociais ou negligência de Lugo no combate à
violência e ao grupo guerrilheiro Exército do Povo Paraguaio (EPP).
Para a defesa, o presidente corre o risco de perder seu mandato por
acusações inexistentes, baseadas em perseguição política. “A verdade é
que não temos partidos políticos que protejam o presidente Lugo”,
lamentou Emilio Camacho, também advogado de Lugo. “É quase uma tragédia
grega, porque Lugo decidiu submeter-se a um juízo político, no qual está
definida sua sentença.”
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Lugo ainda tentou pela manhã uma ação de inconstitucionalidade para a
Suprema Corte do Paraguai contra o processo de impeachment. A defesa se
baseou, entre outras coisas, no pouco tempo que o presidente teve para
preparar sua defesa – cerca de 16 horas. Adolfo Ferreiro, um dos
advogados de Lugo, pediu durante o julgamento que o Senado se “adequasse
aos tempos correspondentes para a apresentação da defesa, que é de 18
dias”.
Enquanto ocorria o julgamento, a Praça de Armas, em frente ao Congresso, reunia milhares de pessoas em apoio a Lugo. Segundo o Ultima Hora,
nos momentos antes de a divulgação dos resultados, mais de 5 mil
pessoas estavam no local em vigília, em um número que ia aumentando
conforme terminava o horário de trabalho. Naquele momento, já havia
incidentes entre a polícia e manifestantes em frente ao prédio da
Vice-presidência.
Lugo não quis renunciar e enfrentou o julgamento sob protesto,
acompanhando o caso pela televisão na sede do governo. O Parlamento o
responsabiliza pelos confrontos, que forçaram a saída do ministro do
Interior, Carlos Filizzola, e do comandante da polícia, Paulino Rojas,
após pressão do Congresso.
Lugo diz que irá resistir a partir de “instâncias organizacionais”
Pouco antes de ser destituído, Lugo disse à Rádio 10 argentina que
acataria o julgamento político votado no Congresso, mas resistiria “a
partir de outras instâncias organizacionais”. “É preciso acatá-lo (o
julgamento político), é um mecanismo constitucional, mas a partir de
outras instâncias organizacionais certamente decidiremos impor uma
resistência para que o âmbito democrático e participativo do Paraguai vá
se consolidando”. O mandatário chamou de golpe a ação do Parlamento.
“Não é mais um golpe de Estado contra o presidente, é um golpe
parlamentar disfarçado de julgamento legal, que serve de instrumento
para um impeachment sem razões válidas que o justifiquem.”
Lugo afirmou ter recebido ligações de apoio dos presidentes Hugo
Chaves (Venezuela) Rafael Correa (Equador), Evo Morales (Bolívia), Dilma
Rousseff e Cristina Kirchner (Argentina).
Unasulfala em “ruptura da ordem democrática”
A rápida movimentação para derrubar Lugo repercutiu em toda a América
do Sul. Os chanceleres dos países integrantes da União das Nações
Sul-Americanas (Unasul) se reuniram na noite de quinta 21 e nesta
sexta-feira 22, em Assunção, com o presidente. Além disso, Nicarágua,
Bolívia e Venezuela denunciaram no Conselho Permanente da Organização
dos Estados Americanos (OEA) que o julgamento de Lugo é “um golpe de
Estado encoberto”. A secretaria de estado norte-americana Hillary
Clinton também manifestou “preocupação” com o processo de impeachment de
Lugo.
Em meio à crise, os chanceleres da Unasul deixaram em caráter de
emergência a cúpula do desenvolvimento sustentável Rio+20 e embarcaram
para o Paraguai. Em Assunção, os membros do bloco puderam acompanhar o
processe no Senado nesta sexta-feira. Mas, se reuniram com Lugo, com o
vice-presidente Frederico Franco e outros dirigentes políticos e
autoridades legislativas para avaliar a situação no país. O grupo, no
entanto relatou não ter obtido “respostas favoráveis às garantias
processuais e democráticas” do processo contra Lugo. Por isso, informou
em comunicado que “as ações em curso poderiam ser compreendidas como uma
ameaça de ruptura da ordem democrática, ao não respeitar o devido
processo”. Os governos da Unasul avaliarão em que medida será possível
continuar a cooperação na integração do continente, além de manter apoio
a Lugo.
A delegação, liderada pelo chanceler brasileiro, Antonio Patriota,
conta também com representantes de Argentina, Uruguai, Chile, Venezuela,
Peru, Equador e Colômbia. A missão se baseia em um protocolo da Unasul
que possibilita aos membros do bloco impor sanções a um país em caso
haja ruptura ou ameaça da ordem democrática. “A tentativa dos
chanceleres é criar um ambiente que habilite uma solução menos
traumática para a democracia (…) para todos nós, seria importante uma
solução negociada”, afirmou Dilma durante entrevista coletiva na Rio+20,
disse a presidenta Dilma Rousseff na tarde de sexta.
O secretario geral da Unasul, Alí Rodríguez, havia adiantado mais
cedo que Venezuela, Bolívia e Nicarágua não reconheceriam outro governo
que não o de Lugo.
Diante do processo de impeachment sumário, o porta-voz para América
Latina do departamento de Estado, William Ostick, advertiu que os EUA
acompanham de perto a crise no Paraguai. “Com base nos compromissos com a
democracia no continente, é importante que as instituições do governo
sirvam aos interesses do povo paraguaio e, para tal, é criticamente
importante que estas instituições ajam de maneira transparente,
observando escrupulosamente os princípios do devido processo e dos
direitos do acusado”.
Durante o dia, manifestantes pró-governo tomaram o local após a saída
de partidários do impeachment do presidente, enquanto as forças
policiais assumiam posições estratégicas em torno do Congresso,
incluindo atiradores de elite. “Estamos aqui para protestar contra esse
julgamento do nosso presidente, um representante genuíno do povo”,
gritava Manuel Martinez, um manifestante que se dizia ser um dos
coordenadores da manifestação.
Mais cedo, os manifestantes “anti-Lugo” expressaram seu apoio aos
deputados e senadores paraguaios pela abertura do processo político. Ao
menos 4 mil agentes foram mobilizados para proteger a região do
Congresso, revelou o porta-voz da Polícia Nacional, comissário Sebastian
Talavera. “Foram tomadas todas as medidas de precaução” para evitar
incidentes, disse.
Por trás do golpe, o Partido Colorado
Em uma entrevista à tevê estatal venezuelana TeleSUR, Fernando Lugo
acusou diretamente o empresário Horacio Cartes de estar por trás da
tentativa de golpe. Cortes é o pré-candidato a presidente nas eleições
previstas para 2013 pelo conservador Partido Colorado. “Esse processo de
impeachment é inconstitucional, (nele) estão unidas as forças mais conservadoras do país”, declarou.
Lugo foi eleito em 2008 com 41% dos votos e interrompeu seis décadas
de poder do Partido Colorado, incluindo 35 anos de governo militar.
Apesar de nunca ter tido maioria no Congresso, Lugo mantinha-se com
poder por meio da aliança com o PLRA (Partido Liberal Radical
Autêntico), de Federico Franco, seu vice-presidente. A aliança entre
ambos foi rompida em 2011.
Ex-bispo católico ligado a movimentos sociais de esquerda, ele tem
histórico atuação com os sem-terra do país. Os conflitos agrários no
Paraguai têm crescido nos últimos anos, o que culminou com o conflito de
Curuguaty. Seus opositores culpam Lugo por má gestão desta crise, o que
se transformou em mote para o impeachment.
Totalmente isolado, Lugo não teve apoio da Igreja Católica. Os bispos
do país pediram ontem a renuncia do presidente “pelo bem do país” e
para evitar atos de violência. “Falamos com muita sinceridade e
franqueza para pedir que renuncie ao cargo e acabe com esta tensão”,
disse o bispo Claudio Giménez, secretário-geral da Conferência Episcopal
Paraguaia (CEP), após se encontrar com o mandatário. Vale lembrar que
Lugo, quando bispo teve diversos filhos.
O Paraguai tem 6,5 milhões de habitantes espalhados em 406,7 mil
quilômetros quadrados, tamanho um pouco maior que o estado de Goiás. O
país tem uma das rendas per capitas mais baixas da América do Sul, com
3,2 mil dólares por ano. O Brasil soma 12,4 mil dólares.
Com informações Agência Brasil e AFP.
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